Especial: Giallo
A cinefilia atual ama o giallo; Dario Argento vem sendo alçado, devidamente, ao posto de grande cineasta da história do cinema; filmes populares de terror e suspense citam o filão ou referenciam sua estética. Mas, pouco conteúdo em profundidade tem sido produzido sobre o assunto.
Há quase um ano, comentei no Bluesky como a lista sobre horror italiano, criada pela pesquisadora, crítica, curadora e realizadora Beatriz Saldanha, havia despertado em mim a vontade de escrever mais sobre giallo. Agora, chegou a hora de publicar o resultado desse breve mergulho no filão.
O especial Giallo aqui seguirá uma ideia de dossiê: serão seis textos, lançados semanalmente, a partir do dia 29 de maio. Cada texto ficará disponível gratuitamente por duas semanas e então só poderá ser acessado através da inscrição paga aqui da newsletter. Então, quem puder ajudar com a divulgação, agradeço muito.
Abaixo, deixo a programação do especial e, depois, um trecho do primeiro texto. Espero que gostem!
29/05 – “Penetrando o Giallo, uma introdução”
05/06 – “1971: o ano que marcou o Giallo”
12/06 – “Giallo e a questão do gênero cinematográfico”
19/06 – “O horror do belo: o fascismo em Dario Argento”
26/06 – “Crítica: Prelúdio Para Matar”
03/07 – “Lista: As 10 melhores mortes do Giallo”
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Trecho de “Penetrando o Giallo, uma introdução”
Giallo, em italiano, quer dizer amarelo. Essa é a informação que inicia qualquer conversa sobre este gênero cinematográfico. Aliás, melhor do que usar a palavra “gênero”, seria mesmo falar a expressão “filone”, que pode ser traduzida como “filão”, uma “sequência ininterrupta de uma mesma matéria”, ou “uma fonte de vantagens e benefícios”.
Amarelo porque era a cor da capa dos livros de mistério lançados na Itália pela Editora Modadori, de autores como Agatha Christie, Edgar Wallace ou de similares italianos. Quando esse tipo de história se popularizou também no cinema, o termo passou para a arte vizinha. O que diferencia, desde um primeiro olhar, os gialli de seus pares do cinema policial é a estetização carregada e as cenas de assassinatos que se tornam extremamente elaboradas.
São filmes que utilizam da estrutura do “whodunnit” (“Quem matou?”) e seguem pessoas comuns que se tornam investigadores amadores da situação, o que costuma colocá-los na mira dos assassinos. Os protagonistas são curiosos, enxeridos, ou simplesmente coitados que se veem no meio de uma conspiração. Ambos os tropos típicos de Alfred Hitchcock, figura modelo para o filão. O que, porém, no cinema do inglês era sugestão e sensualidade, torna-se sexualidade patente e exageros estéticos.
O giallo é uma mistura de filme B, comercial, com filme de autor, carregando muitas influências dos cinemas modernos. De um lado a nudez e o erotismo; a violência extremada; os códigos de gêneros populares do cinema e da literatura. Do outro, o experimentalismo formal, como os movimentos de câmera desestabilizantes, as cores artificiais, a montagem rítmica, as experimentações narrativas com flashbacks, sonhos e imagens subjetivas; o jogo com a proliferação de pontos-de-vista; a investigação arquitetônica das cidades; a inspiração nas artes plásticas modernistas; a metalinguagem e a autoconsciência.
Junto a outros filões, essa mistura se tornou um sucesso e começou a ser massivamente produzida entre o final dos anos de 1960 e os anos 1970, em seu auge. A indústria italiana de cinema, como toda a Europa, havia sofrido perdas gigantescas com a Segunda Guerra Mundial. Coube aos Estados Unidos, com o imperialismo de costume, estender seus tentáculos e impor a distribuição do cinema americano em troca de auxílio financeiro. Com a crise dos anos 1950, que viu a chegada da televisão enfraquecendo as salas de exibição, a Itália virou um celeiro de filmes de gênero de baixo orçamento apoiados pelos EUA.
Esse contexto ajuda a explicar duas outras características marcantes dos gialli: a massiva presença de atores estrangeiros e o uso de outros países europeus como cenário, já que a ideia era atrair todo tipo de público internacional. Mas nada nesse gênero é puramente comercial. Além de Hitchcock, outra figura modelo foi Michelangelo Antonioni e seu “Blow-Up - Depois Daquele Beijo”. Ou seja, o interesse pela exploração espacial e social da vida moderna.
Pessoas e localidades deslocadas, que aparentemente não se encaixam ou não têm raízes, são um símbolo da sociedade moderna. Ela é alienada e vazia, vagando sem sentido por entre arquiteturas marcantes no exterior e designs modernistas dos interiores. Há um excesso na aparência e uma falta de propósito na essência. A desestabilização formal também é muito marcante, com zooms rápidos, movimentos de câmera que desequilibram, cores gritantes, truques fotográficos e trilhas sonoras de jazz ou rock progressivo.
A figura do detetive amador, normalmente um estrangeiro, traz um olhar de fora. Como se precisasse do externo para reconhecer o que há de estranho, de errado, no aparentemente banal (mais uma influência clara hitchcockiana). Essa personagem tenta reestabelecer alguma ordem, ainda que isso seja quase sempre impossível, já que as explicações do giallo costumam ser estapafúrdias. A modernidade é, afinal, uma confusão de símbolos, culturas, grupos sociais, gêneros, crenças e substâncias alucinógenas.
Ainda assim, é preciso desvendar, aprofundar-se. Desrecalcar. O léxico da psicanálise é muito pertinente porque estamos em território de traumas e sexualidade. Sonhos e memórias. Como em “Psicose” e “A Tortura do Medo”, do início dos anos 60, os objetos pontiagudos usados para cometer crimes assumem uma conotação fálica. O olhar do investigador curioso é voyeur. O ponto-de-vista, com a proliferação de planos subjetivos, é carregado de tesão e violência que, no giallo, são a mesma coisa. E, é claro, todo espectador do cinema é também um voyeur, excitado em ver o festival voraz de nudez, sangue, morte, sons e luzes. A metalinguagem e a autoconsciência estão sempre presentes.
Nas profundezas dessa sociedade que começa a se tornar pura superficialidade, esconde-se todo tipo de desejo e de desvio. Se o cinema noir, nos anos 40, teve de lidar com o deslocamento da figura masculina que retornou da guerra emasculado, vendo as mulheres assumirem o posto de provedoras e ativas, o giallo lida com algo parecido. Os anos 60 foram de libertação sexual, drogas e rock’n’roll. No final da década e na seguinte, veio a resposta reacionária a isso.
As personagens dos gialli, principalmente as mulheres, são punidas pela sua sexualidade e por seus desejos. Um elemento narrativo comum é o gaslighting, ou seja, de mulheres que, por causa de uma conspiração em que elas se veem envolvidas, mas ignoram, começam a sentir que estão enlouquecendo. Alguns exemplares caem na pura misoginia, enquanto outros operam uma inversão de papéis de gênero, como é o caso de Dario Argento. Nos filmes do diretor, homens são emasculados, mulheres se vingam por seus traumas e figuras andrógenas ou trans recebem um olhar de atenção e carinho não muito comum para a época.
O propósito do giallo, assim como o de seus protagonistas, é o de penetrar nas profundezas do individual e social na modernidade e exibir as entranhas de todos os seus desejos e traumas recalcados.
(O texto completo será publicado dia 29/05 aqui na Newsletter Espectros)