Shyamalan e "Armadilha"
Os filmes do Shyamalan não são sobre a crença, exatamente. Nenhum deles duvida do que está acontecendo, do que mostra. A evidência está ali. Tudo no cinema dele é SEMPRE real, mesmo em “A Vila” ou em “Batem à Porta”.
A narrativa (mítica, religiosa, heroica, sobrenatural) está posta. Agora, basta que as pessoas inseridas nessa narrativa entendam isso e descubram o papel delas no jogo. O cinema do Shyamalan é sobre descobrir a si mesmo, o seu potencial de se tornar herói, vilão, salvador, sobrevivente, mártir. É sobre, a partir do momento que descobrir que aquela história existe naqueles termos, achar o seu papel.
Em “A Dama na Água”, ao encontrar a ninfa na beira da piscina, Mr. Heep imediatamente percebe a realidade do conto de fada. O que ele precisa não é convencer os outros dessa verdade, apenas delimitar o papel de cada um. Se o personagem do Jeffrey Wright pergunta "isso é só uma brincadeira?", é para logo depois entender que não, sem que haja necessidade do convencimento.
“A Vila”, que superficialmente parece negar isso, também sabe que aquela narrativa é real, uma vez que basta que todos digam que é. Cada um assumindo seu papel naquela verdade, a história pode se desenrolar e o potencial dos personagens aparecer, mesmo que esse potencial seja o de destruir ou escapar daquela narrativa.
O que se diz, o que se vê, o que se conta, é o que cria a realidade. Se estamos vivendo aquilo, então é verdade. Na primeira vez que Dave Bautista surge em cena em “Batem à Porta”, nós e o filme sabemos que ele está falando a verdade. Fantasmas, Deus, aliens, heróis, vilões, o tempo, a doença invisível, a história inventada existem uma vez que nos contaram que existem.
Os filmes do Shyamalan, portanto, são sobre o potencial que cada um tem. Não se deve perguntar se Bruce Willis é um herói, mas qual o tamanho de sua força (na cena em que o filho, admirado, coloca mais peso para o pai levantar). Todos têm um papel na narrativa que criamos para nós mesmos. É preciso saber disso e, com a máxima potência, seguir até que ele se realize.
Armadilha
“Armadilha” é mais um passo na visão do diretor sobre as histórias que compõem o mundo. O filme é, na verdade, o oposto do que têm falado por aí (algo como, "a primeira metade é um suspense e a segunda uma desconstrução disso").
As sequências no estádio são todas pensadas como situações cômicas, esquetes de uma comédia de erros, que aqui se encaixaria mais como uma comédia de acertos do protagonista. Lógica aristotélica para que? Se o público quer viradas, plot twists, que tal uma virada por cena?
Nessa esfera pública do estádio, é o homem branco e charmoso que ainda domina. O Shymalan literalmente dá a ele o passe livre para os bastidores, dá todo o controle da encenação e da narrativa. Ele seduz a todos e ao espectador, que mesmo sabendo de seus crimes, cisma em torcer por ele. Até porque também é dele o ponto de vista até ali.
O que demonstra, também, um olhar mais cínico do diretor sobre as histórias que conta e os recursos da narrativa, coisa que antes aparecia mais camuflada em seus filmes (ainda que o papel dele em “Tempo” já revelasse uma espécie de autoconsciência crítica do seu poder).
Sabemos que o Cooper de Josh Hartnett é o assassino, mas isso só desabona o personagem quando ele assume verbalmente sua posição naquele jogo. É quando estamos nos bastidores, já no âmbito mais privado dentro do público. Aí muda-se o ponto de vista e vamos para a vida pessoal, domiciliar. E é só neste ponto que o suspense se instaura de fato. O homem branco perde o protagonismo nessa vida privada que é composta por mulheres e pessoas não brancas (esposa, filha, cantora, a fã, a vítima). Não há como ter controle, o charme só funciona com as instituições sociais.
A necessidade de controle é a patologia do TOC na esfera pessoal, aí os erros se acumulam, o humano surge. É impossível ser perfeito no que se propõe e ao mesmo tempo ter uma família. O que humaniza é a raiva, o sentimento, o calcanhar de Aquiles. Separar as duas vidas leva ao bom desempenho em ambas. Quando elas se confundem, reina o caos.
Nessa contaminação de uma pela outra, as telas e câmeras são os dispositivos maiores. Colocar sua vida privada no Instagram, filmar o show com o celular, mostrar o palco no telão, vigiar a vítima com uma câmera. Realmente é cair na armadilha.
São planos belíssimos da contaminação, como o do pai que arruma a casa enquanto a sombra da polícia se aproximando é projetada na parede. E ainda que “Armadilha” não tenha a concisão formal do Shyamalan de outros tempos, há momentos como o da reunião familiar com a cantora explicando a situação para a esposa que secretamente já sabe da identidade do marido, o assassino sem entender que está cercado, a filha encantada com a pop star... É um nível de diferentes motivações, segredos e máscaras que a composição simples, em dois ou três planos gerais e com cortes precisos, ainda demonstra a elegância da encenação do Shyamalan.
Há algo de muito clássico, mudo mesmo, no Josh Hartnett. Desde as expressões teatralizadas até a lógica desse mundo que conspira para prender o assassino e este precisando tomar agência e bagunçar as estruturas para se livrar. Não sei se Buster Keaton seria uma boa comparação, mas foi o que me veio à cabeça. Também, definitivamente, o charme de um Cary Grant.
Dito isso, como alguém pode reclamar das atuações nos filmes do Shyamalan quando temos uma precisão absurda no que o Hartnett faz? Cada tique e vai-e-volta da máscara humana que ele veste se quebrando e se reconstruindo constantemente.
Apesar do olhar crítico e quase cínico do filme, ainda há o lado compreensivo, que enxerga para além das aparências. Ou melhor, que enxerga que na superfície das aparências ou papeis que assumimos, existe verdade. O discurso da Taylor Swift fake sobre superação é tosco? Sim, mas se aqueles fãs acreditam naquilo, ele se torna real e significativo. O teatro do social e a humanidade problemática do pessoal se confundem o tempo inteiro, narrativamente e nos símbolos escolhidos, como a live no Instagram ou a mãe/agente do FBI.
Por isso, também, é um filme que deve irritar tanto os já detratores quanto os defensores do diretor. É a mistura de gêneros, o apego no antinatural em um filme em que a situação é realista. Tem muito despojamento em um filme que assume que, a partir de um ponto, o controle é impossível. É mais proveitoso tatear o humano na tentativa e rir dos altos e baixos da viagem.