Bad Bunny e o hino... "anti-anti-imperialista"(?)
No dia 5 de janeiro de 2025, o artista porto-riquenho Bad Bunny lançou o álbum “DeBÍ TiRAR MáS FOToS”, que logo viralizou no mundo todo carregando a ideia do registro de um tempo que já passou. Seja um relacionamento que terminou, ou de um país que está perdendo sua cultura e suas características.
O curta lançado para divulgar o álbum se apoia no lado mais político da coisa, mostrando um senhor, cidadão de Porto Rico, que se vê perdido em meio à gentrificação, das músicas em inglês à padaria que se tornou uma lanchonete hypada. Bad Bunny canta sobre as pessoas que tiveram que deixar a ilha em busca de oportunidades melhores, já que o imperialismo norte-americano impede o local de prosperar.
O cantor elegeu a figura do sapo como mascote da obra, alegorizando que os nativos de Porto Rico estão em extinção. O sapo coquí é símbolo cultural da região e gerou a expressão “Soy de aquí como el coquí”. Já outra espécie, o sapo-de-crista, desapareceu da localidade por mais de 40 anos.
Música chave para esta leitura é “LO QUE LE PASÓ A HAWAii”, que tece as relações entre Porto Rico e o Havaí, ambos territórios perdidos entre a própria cultura e a incorporação estadunidense. A ilha caribenha foi invadida pelos EUA em 1898, enquanto um golpe de estado aplicado pelos EUA em 1893 derrubou a monarquia havaiana.
“Quieren quitarme el río y también la playa
Quieren el barrio mío y que abuelita se vaya
No, no suelte' la bandera ni olvide' el lelolai
Que no quiero que hagan contigo lo que le pasó a Hawái”
Como demonstra a letra acima, a música tem um forte pendor anti-imperialista, colocando que a cultura e o poder norte-americanos querem “tirar o rio e a praia; levar embora a quebrada e a avó”. Inclusive, pedindo para que não soltem a bandeira de Porto Rico, o que transmite a mensagem de apoio à independência da ilha.
É o mais óbvio a se interpretar, a não ser que você esteja no TikTok. Por lá, a canção viralizou entre latinos de outras regiões. Ao pesquisá-la no aplicativo, os primeiros vídeos mostram venezuelanos comparando a situação de Porto Rico com a do próprio país. Vídeos que criticam o regime venezuelano e enaltecem a oposição alinhada aos EUA. Um deles ainda troca, na legenda, a frase “lo que le pasó a Hawái” para “lo que le pasó a Cuba”, para deixar claro de qual perspectiva vem a comparação. Os governos locais seriam, então, os grandes vilões.
Com todos os problemas que Cuba e Venezuela possam ter, são dois países que, bem ou mal, representam justamente a luta anti-imperialista cara à Bad Bunny em “DeBÍ TiRAR MáS FOToS”. Antes da revolução, Cuba era uma mistura de cassino e puteiro, o puxadinho dos EUA comandado pelo ditador Fulgencio Batista. Já a Venezuela pré-chavista era um país cuja grande riqueza ficava nas mãos da elite, enquanto o povo se via em meio à austeridade, pobreza e crises políticas e econômicas.
Segundo a ONU, em 2019 a quantidade de refugiados e migrantes venezuelanos no mundo já havia atingido 3,4 milhões. É bom que fique claro, portanto, que este texto não é uma defesa do imbecil autocrata do Nicolás Maduro, ainda mais depois da pataquada das últimas eleições. O ponto é que, para além de todos os problemas causados pelo regime, boa parte da crise acontece também por causa das sanções dos EUA, assim como em Cuba.
Em 2023, os EUA aliviaram sanções sobre petróleo, gás e ouro da Venezuela, o que fez com que o país terminasse aquele ano com queda da inflação e crescimento do PIB. De novo, é impossível criticar o regime e desejar o fim da crise humanitária sem colocar o sufocamento causado pelos EUA na conta.
De toda forma, o assunto é espinhoso. O que parece mais fácil, no entanto, é entender que não há comparação possível entre os problemas e dificuldades sofridos durante uma luta anti-imperialista com o imperialismo em si. Pior que ser governado por Maduro, é só ser colônia de outro país. Utilizar uma obra com ares de crítica ao colonialismo para falar mal de quem ao menos tenta se colocar contra ele parece, no mínimo, uma estupidez.
De estupidez o TikTok está cheio, infelizmente. No ano passado, viralizou a trend “Como Nossos Pais”, que deturpava a canção de Elis Regina como se ela estivesse enaltecendo o conservadorismo e os bons costumes da família tradicional brasileira. Seria isso uma incapacidade de interpretação?
Já falei bem brevemente nesta newsletter sobre a nova forma de se relacionar com a arte. As pessoas, cada vez mais egocêntricas e narcisista por causa da ideologia neoliberal dominante, da realidade de hiperprodução no trabalho, da hiperinformação, dos efeitos colaterais da pandemia e vários outros fatores, já se tornaram incapazes de se abrir para o mundo. Elas não conseguem mais fruir de uma obra de arte abrindo-se ao que ela tem para oferecer, permitindo que ela entre em cada pessoa e se torne delas. Agora, as pessoas impõem o que querem em cima da arte. Não é mais da obra para nós, mas de nós para a obra.
A arte se tornou apenas um suporte para despejarmos o nosso ego inflado. Ela já nem precisa mais existir, já que cada um cria o que quer na própria cabeça. Além de tudo, esse movimento é fatal para a arte, já que ela mina as possibilidades de, de fato, apropriar-se da obra. Umas das melhores características da cultura brasileira é a sua antropofagia, a nossa capacidade de sequestrar, deglutir o que não é nosso ou não nos cabe. De cuspir algo novo que passa a ser totalmente nosso. Mas, como fazer isso se já não somos capazes da crítica? Se o que eu crio na minha cabeça é a forma perfeita do que eu quero e não uma apreensão do que o mundo me deu, já não posso mais alterá-lo. A estátua que é uma representação da imagem de Narciso não pode ser mudada justamente porque ela é “perfeita”. Alterá-la é reconhecer a sua imperfeição.
Enquanto isso, a Folha de S. Paulo aproveitou a trend com a música de Bad Bunny para mostrar que ela se tornou “protesto para imigrantes da América Latina nas redes”, citando principalmente a Venezuela. Uma rápida pesquisa no aplicativo mostra que os vídeos que usam a música, em sua maioria, não tratam do país, mas esse foi o recorte escolhido pela matéria, que também ignora que a trend foi usada, por exemplo, por palestinos em Gaza, que sofrem nas mãos do colonialismo americano e israelense.
Mesmo que tudo isso aconteça de forma ingênua, sempre há quem irá se utilizar dessa realidade para fins ideologicamente nefastos. Não é curioso que um álbum que comenta o imperialismo norte-americano, lançado próximo à posse de Donald Trump, viralize nas redes sociais com uma ideologia invertida? Que passe a criticar “os inimigos” dos EUA? Logo, também, num momento em que a Guerra da Ucrânia faz com que os recursos venezuelanos de gás e petróleo se tornem ainda mais importante para a tal da America?
Seja com uso político ou não, a verdade é que as nossas bolhas egocêntricas criam aberrações interpretativas como é este caso do Bad Bunny. Até porque, na pós-modernidade, nada mais tem lastro nem história. Os significados já não são mais coesos e podem ser utilizados a bel-prazer de quem quer relacionar a arte com a própria personalidade. “Eu sou o que eu gosto e o que eu gosto precisa ser a minha imagem e semelhança”. Tudo se deturpa e ninguém mais consegue conversar, já que cada um está falando a própria língua.
Há, também, uma certa necessidade de atacar o portador de más notícias, como afirmava Theodor Adorno. Fazer uma crítica ou discutir um assunto pode ser perigoso na internet em que tudo perde seu significado original e cada um faz a interpretação selvagem que achar conveniente. Pode ser que tudo o que foi dito aqui seja mal interpretado e me acusem de defender ditador de país latino. De qualquer forma, deixo bem claro que, pelo menos, jamais poderão me acusar de passar pano para imperialismo norte-americano. Acho que Bad Bunny ficaria feliz em saber disso.